Por: Dr. Ricardo Abelha, psicanalista e filósofo
Há quem subestime a psicanálise, dado o advento do marketing e a usurpação promovida por picaretas, tratando-a como uma mera psicoterapia, ou ainda, uma abordagem ultrapassada.
O fato é que autores como Althusser (1918–1990) ou Collingwood (1889–1943) a levaram muito a sério. E não por menos. Compreender a contribuição de Freud (1856–1939) sobre a psicologia das massas — embora seja um conceito discutível, como sugeriu Olavo de Carvalho (1947–2022) — posto que, ao observar literalmente a psicologia das massas, haveria de se admitir que as multidões não se constituem de indivíduos particulares, com seus microcosmos, mas são diluídas em força braçal, compondo um único indivíduo observável pelo coletivo. Algo que, em si, já supõe certa monstruosidade.
Embora considerado por Ortega y Gasset (1883–1955), na concepção de “homem-massa”, esse conceito de psicologia das massas é capturável a exame, no sentido cultural-simbólico. Ora, se deslocarmos o conceito de psicologia das massas para um campo puramente teórico, antropológico-cultural-simbólico, teremos matizes de um rastro sofisticado do inconsciente em coletivo (me esquivando aqui do conceito de Jung [1875–1961], de inconsciente coletivo, que diz respeito a outra coisa).
Bem, considerando então esse aspecto particular, sim, eu diria que é possível apreender a psicologia das massas como um fenômeno. Evidentemente que, de tempos em tempos, esse fenômeno se transforma em outro, e em outro, e assim por diante — mas deixando seu espectro de desdobramentos com uma possível fonte primitiva, rastreável pelo levantamento histórico, e, por assim dizer, até mesmo pela história das ideias, como fez, por exemplo, Kierkegaard (1813–1855) a respeito do romantismo alemão em “O Conceito de Ironia”.
Estou construindo esse mosaico para apresentar a minha tese, e não apenas lançar mão do que penso sem qualquer base ou fundamento, mas, pelo contrário, levantar não só uma tendência histórica e filosófica, como também epistemológica, sobre o caso em questão.
Venho falar sobre o Desfile Onírico presente nas redes sociais — o novo ambiente onde o inconsciente se manifesta aquém dos recônditos da consciência, por via dos sonhos, que antes eram revelados e analisados minuciosamente no divã.
Quero apoiar aqui o Desfile Onírico (ou dos sonhos) como metáfora, em referência ao filme Paprika (2006), de Yasutaka Tsutsui, dirigido por Satoshi Kon. Bem por alto, o filme trabalha avanços científicos significativos, que irei julgar em grau de transumanismo, posto que o aparelho DC Mini tem a capacidade de se conectar à consciência e gravar sonhos para fins não só terapêuticos, mas laboratoriais, psiquiátricos (e até policiais). Pensemos, com base na própria trama e, por que não, considerando o óbvio da natureza humana, político.
O uso do DC Mini causa um efeito inebriante porque abre portas para o que irei considerar, em vias psicanalíticas (não só pelo discurso do filme, mas por sua ambientação no desejo, nas contradições morais e na busca por prazer e dominação do outro), como o inconsciente.
Estou então observando o filme com base objetiva em sua trama e proposta externa, penetrando na problemática que ele abre sobre questões éticas e morais, à perda de privacidade do aspecto mais profundo do ser humano — e não só isso, mas também — aspectos quase incompreensíveis, dada sua complexidade simbólica em valores, crenças, imagens e pulsões, que reconstroem a constituição universal do indivíduo, como também as particulares (estão no Japão contemporâneo, são cientistas, etc…).
Portanto, aqui chegamos em questões da filosofia da arte, posto que tudo isso — considerando as cenas que mesclam o Japão clássico ao moderno, bonecas e tecnologias futuristas, dentre outras coisas — proporciona ao espectador uma grande experiência estética.
Finalmente, a julgar pelo conteúdo interno, integral, não há como não analisar a obra pela via da psicanálise aplicada (ou extramuros). Nesse sentido, voltemos ao Desfile Onírico, que talvez seja o espetáculo mais grotesco presente na obra, ao qual quero me utilizar para analisar e apresentar uma crítica aos pós-modernos, no uso das redes sociais.
O Desfile, no filme, basicamente, é a soma e a condensação do sonho coletivo de todos que tiveram contato com o portador do DC Mini. Já que um deles foi roubado, e alguém passou a penetrar os sonhos para conseguir informações e ter atuações criminosas de altíssima periculosidade.
Esse desfile grotesco (grotesco no sentido de inversão total da finalidade do belo presente na arte — como estado de corrupção, desgosto e riso; um riso maligno, dado por uma piada ruim que visa ridicularizar o bem — como trabalhou, em seu livro, Muniz Sodré [1942] em O Império do Grotesco) então suscita o que há de mais louco, alegre, vulgar e irracional dos desejos humanos.
E ele é irresistível. Todos que param para apreciá-lo acabam se unindo a ele. E este Desfile segue rumo ao infinito, marchando em festa. A massa espalhafatosa presente no Desfile rompe o mundo dos sonhos e se manifesta no mundo real, destruindo a fronteira entre o onírico e o concreto de modo quase metafísico, tornando o portador do DC Mini em quase um deus — algo que ele demonstrava, em suas motivações, ser parte do plano.
Bem, quero que pense na internet atual, das redes sociais, exatamente como no Desfile Onírico de Paprika, possibilitado via transumanismo. Ou seja, não temos ainda um DC Mini, mas temos smartphones, temos laptops, temos conexão em banda larga a nível global, com tecnologia 4G, 5G, vendo tudo e todos em tempo real, compartilhando, curtindo, salvando, cortando, editando, reeditando, repostando, transmitindo ao vivo ou, ainda, comentando (ou boicotando), gerando movimentos de massa, comprando coisas — tudo em velocidade alucinante, tudo ao mesmo tempo.
Tudo e todos se expõem o tempo todo; todos mostram suas bandas favoritas, suas séries e canais, seguem grupos, comunidades e assinam serviços que lhes oferecem mais e mais do mesmo com base no Save Data.
A massa titânica de dados, tão pesada quanto o castigo de Atlas, tão redizente quanto a pedra de Sísifo, mantém os olhos das Big Techs sempre abertos, sem pálpebras, conhecendo e absorvendo cada vez mais conhecimento, pelos cliques gerados pelos olhos dos consumidores, que, como disse Salomão, “não cansam de ver” — repetidas e repetidas vezes, infinitamente e cada vez mais — alimentando uma arrecadação superior aos maiores PIBs do mundo, segundo Eugênio Bucci (1958), em A Superindústria do Imaginário.
Ora, penso nisso tudo num grande fluxo de pensamento, tal qual Fernando Pessoa (1888–1935) em Ode Triunfal (Álvaro de Campos):
“À dolorosa luz das grandes lâmpadas eléctricas da fábrica / Tenho febre e escrevo. / Escrevo rangendo os dentes, fera para a beleza disto…”
Ele parece ter tido perplexidade parecida.
Eis a questão: não estou renegando a tecnologia e o avanço das máquinas e suas engrenagens, r-r-r-r-r-r-r…, mas considerando uma absorção da realidade por elas, dada uma submissão niilista do homem contemporâneo.
Se o homem desistiu de si, ele desistiu de si em si. E é isso o que a internet, como a vida onírica no período noturno, costumava proporcionar: a possibilidade de ser outro. Os sonhos costumavam ser um fenômeno de elaboração, condensação, compensação de conteúdos reprimidos da experiência emocional desde a terna infância até o cotidiano residual.
A internet parece ter substituído isso. Posto que o homem contemporâneo já não sonha mais, já não tem mais contemplação, e já transformou o rosário num smartphone, como destacou Byung-Chul Han (1959).
Ora, se os antigos “améns” se tornaram “likes” ou “ameis”, os posts compartilhados, os memes, os trechos de séries ou filmes, a própria pornografia se tornou um estado do possível — ou seja, uma compensação, uma condensação e uma elaboração da antiga vida onírica.
Eu coloquei nessa ordem porque a compensação surge com os filtros de Instagram, Photoshop e outros aplicativos que nos “melhoram”; a condensação vem dos feeds, números de seguidores e canais que geram fontes de renda — não mais ao intelectual dedicado, ao profissional sênior ou PhD em alguma coisa, mas ao João-ninguém iletrado que soube se comunicar com seu público.
Vejam nossos influenciadores: as pessoas mais populares que direcionam o pensamento dos jovens em massa. Não se trata de uma crítica à pessoa deles, mas ao substrato de suas ideias, às quais não irei entrar no mérito.
Esse é o país onde alguém como Neymar ou uma cantora pop dá um parecer político-cultural — o mesmo país de Joaquim Nabuco, Dom Pedro II ou Machado de Assis.
O cume do que quero dizer, objetivamente, é que alguém que antes de fato tinha algo a dizer ou produzir foi substituído por alguém que diz ou faz, independentemente de o substrato do que foi dito ou feito ter valor real ou percepção de valor. Ou seja, uma operação psicológica de valor, algo mais conceitual, via mímesis.
Em outras palavras: o desejo que a massa tem de ser como eles os torna melhores, mais contribuintes ou mais significativos que os realmente importantes.
Alguém como Pelé, por exemplo, foi substituído na mímesis da massa por algum jogador que, provavelmente, saiu na G Magazine ou algo assim. E aqui vemos a psicologia das massas no grande Desfile Onírico da internet.
Não defendo aqui um retorno ao mundo médio, mas defendo um retorno à autocrítica.
A produção em massa de identidades literárias, uma verdadeira epidemia de “eu-líricos virtuais” — seja por alianças inconscientes (ideologias), seja por modismos — como já discutiu Bauman (1925–2017), apregoa o cisma da inteligência dos pós-modernos.
Essa alienação constitui um fenômeno de psicose social, onde as massas apontam para uma perda de contato com a realidade.
E isso diz muito sobre o transbordamento pulsional de suas vidas oníricas, onde o “eu” não suportou a repressão superegóica, tentando a todo custo mitigar o desejo desenfreado do id.
Transbordou…
Como uma engrenagem de relógio, a pressão soltou os pinos, e o ponteiro frouxo ficou girando descompassado, sem objetivo, sem freios que o possam reprimir, retornando-o aos trilhos.
Eis o Desfile Onírico e sua estrutura sintomática: debaixo do nariz de todos, seduzindo a todos, envolvendo a todos — de modo irresistível e sem retorno — na ruptura da realidade pelo triunfo da representação.