Por: Dr. Ricardo Abelha
Bem-vindo caro leitor(a), e aliás, feliz natal e boas festas. Escrevo este texto muito próximo do Natal, e rumino em minha mente questões sobre a substância humana. É certo que parece retrógrado refletir a respeito de algo tão ultrapassado, quando se tem “Descer Pra BC” em alta como ritmo de verão. O pensamento estritamente brasileiro de dinheiro, mulher (por ter dinheiro) e alguma noção de consumo, por se ter dinheiro; não porque se conquistou a soma com um duro trabalho, mas porque “Papai deixou uma herança bem gorda”. Há algo mais pós-moderno do que essa música? O pai trabalhou, construiu um patrimônio para não desamparar a família, e a visão do adolescente tardio da pós-modernidade é farra.
Ora, se a música brasileira se deslocou de algo como:
“E por falar em saudade / Onde anda você? / Onde anda os seus olhos / Que a gente não vê / Onde anda esse corpo? / Que me deixou morto / De tanto prazer”“Onde Anda Você” de Vinícius de Moraes e Toquinho,
para:
“Nós vai descer, vai descer / Descer lá pra BC no finalzin’do ano / Os bombonzin’tão bronzeando pra chegar e morder”,
temos um sintoma social explícito da perda não apenas da estética, do bom gosto e do valor poético, considerando que se trata do ‘hit do momento’, também diz que perdemos a capacidade simbólica. E isso é um sinal objetivo de primitivização.
O homem pré-histórico, tanto na caverna de Altamira quanto na de Lascaux, pintou o que viu. Sua representação é ausente de conceito e simbolismo, ela é absolutamente literal e objetiva. O Eu do homem primitivo ainda não estava dissociado da realidade objetiva, do mundo externo. Ele não demonstra uma vida onírica. Ele deseja exatamente o que vê, para saciar suas necessidades básicas e fisiológicas. Não há nele nada que remeta a uma capacidade de metáfora, algo que torna a imagem representada pessoal, algo que diz qualquer coisa sobre sua vida interior – como por exemplo, nas obras bizantinas ou renascentistas. Ainda que eu desse um exemplo objetivo, me deslocando para o Egito, a representação é profundamente simbólica a começar pelos deuses.
Há nos antigos egípcios uma noção profunda de vida interior, crença na imortalidade e em um mundo espiritual inteligível. Eles não representam objetivamente o que veem em qualquer espaço natural. Há o aspecto humano de conceituar a coisa vista. Simbolizá-la. Narrar algo; bem, o ‘hit do momento’, parece muito uma arte rupestre nesse aspecto. A narrativa é objetivamente situada nas necessidades básicas mais baixas, sem qualquer conceituação, simbolismo e narrativa pessoal. A busca em questão, explicitada e ouvida por milhares de pessoas, é absolutamente material e libidinal. Isso demonstra um desmantelamento da civilização, numa perspectiva freudiana, já que ele defendia um triunfo da razão sobre os instintos. Há um preço, evidentemente, para essa sublimação: o mal-estar social, dado a repressão necessária, mas há um retorno maior que o indivíduo – a permanência da civilidade, do que há de mais humano, e, portanto, a capacidade simbólica expressa na arte, na literatura, na música, na poesia, etc.
Aristóteles disse que o homem é um animal político; ora, considerando os últimos desdobramentos brasileiros, no que tange cultura e expressão simbólica, parece que perdeu-se o político, ficando apenas o animal. Já que, os instintos, têm se mostrado evidentes em todas as áreas, principalmente no campo político, com a imensa polarização e um Flá-Flu interminável, seguido de perseguições, prisões ilegais e escândalos públicos. Antes éramos o país do futebol e samba, agora, o país do funk e da ideologia de gênero aplicada (inclusive, e recentemente, no hino nacional, por via de figuras públicas). Bem, o que se espera de uma cultura assim, em frangalhos?
Pacientes não apresentam mais seus sonhos em clínica, porque simplesmente não sonham mais. Não detêm mais uma vida interior; estão aprisionados no quotidiano utilitário. A subjetividade foi absorvida pela política e pelo mundo do trabalho, a ponto de uma confusão sobre quem se pode ir na janela de um avião, gerar uma comoção nacional, digna de cobertura do maior jornal do país. A atenção do brasileiro médio diluiu dos púlpitos, das imagens e da eucaristia, para a justiça social, para o consumo de subpersonalidades do TikTok e para qual partido político se gosta mais.
Enquanto isso, o preço da carne sobe, o dólar sobe batendo recordes históricos e o nível de imbecilidade social atinge o domo ao quadrado, do que se poderia pensar a respeito de consumo de massas, como pessoas trancadas numa casa vigiadas, brigando por um prêmio milionário ou ainda, idiotas numa banheira de chocolate.
O desespero brasileiro tem sido tamanho na ausência de heróis, que a série de Ayrton Senna tem sido um dos temas mais discutidos. As pessoas não fazem a menor ideia que tivemos um Dom Pedro II ou um Joaquim Nabuco. A memória do brasileiro é curta e chega até Dilma, saudando a mandioca. A minha preocupação é que sem vida onírica, o que restou do QI médio brasileiro, vai descer, vai descer, muito mais, talvez não restando mais qualquer traço humano. E quanto mais instintual for uma cultura, mais violenta, por conseguinte, ela tenderá a ser. E sendo, mais a necessidade de implementação de vigilância e leis pesadas. Mais a necessidade de um Estado grande e forte, para suprimir a violência desenfreada do povo. Ora, Colson escreveu sobre isso, Hobbes escreveu sobre isso, e Trotsky escreveu sobre isso.
O primeiro sintoma de perda de capacidade simbólica é a perda de capital linguístico. Ou seja, quanto mais rebaixado o vocábulo, por consequência, maior a imbecilidade. George Orwell falou sobre isso em “Por que escrevo”, demonstrando que a linguagem está interligada com a consciência. Uma via de mão-dupla; a linguagem então expressa o real, como Platão já demonstrou em Crátilo. E expressando, compreende as coisas, como predicados e subjetivos. Há uma gramática dos objetos; que constituem uma lógica objetiva do que é e do que não é. Isso instaura uma harmonia na realidade, no ato de se envolver com ela, experimentá-la e absorvê-la pela consciência, simbolizando-a, metaforando-a na representação. Sem capacidade simbólica, a civilidade de uma cultura cai. Desfaz-se. Recaindo na barbárie e, portanto, na pulsão de morte; os instintos mais baixos de destruição, dado pela busca de prazer e satisfação.
É certo que há um arquétipo apocalíptico em voga no imaginário social, dado a absorção dos textos sagrados, sobretudo, do livro de João. Mas há mais que uma espera do fim, há uma materialização dele. Quase como: “se os cavaleiros do apocalipse não vierem, nós nos faremos eles”. A cada semana, crê-se que se concretiza profecias; tenho até a remota impressão de que estou no Islã e não no Ocidente, dado a compreensão de revelação por progressão histórica… Ocorre que a cosmologia bíblica é fechada, não aberta. O fim já está consumado ainda na criação. Ele apenas vai se revelando pela condição histórica, confirmando os testemunhos presentes nos testamentos.
Por isso, Calvino chamou alguns de eleitos. Porque tudo já estava consumado, na eternidade. Quando se crê que em cada esquina revela-se algo, confirma-se algo, estamos trocando de cosmologia e isso é uma imensa ignorância teológica.
Ora, que pensar de tudo isso, observando que, na ausência de faculdade interpretativa e vida onírica, o cidadão comum se curva às pautas populistas e à linguagem midiática, incorporando-a em seu próprio vocabulário? A composição quotidiana é estruturada em consumo de massa da pior qualidade, e da insuficiência absoluta de expressão simbólica. Resultado: pessoas depressivas, violentas, impacientes e histéricas.
Segundo a agenciabrasil.ebc, “(…) os especialistas (…) mostram um país violento, com taxa atual de 22 mortes a cada 100 mil habitantes, sendo que a ONU recomenda uma taxa de 5,8 mortes a cada 100 mil habitantes”. No politize.com diz que “(…) em 2022, o Brasil registrou 47.508 mortes violentas intencionais. O número é o maior dos últimos 11 anos. Em termos estatísticos, a taxa de mortalidade ficou em 23,4 a cada 100 mil habitantes, o que representa uma redução de 2,4% em relação a 2021”.
E ainda queremos falar da guerra nos outros países. Falei sobre isso com meu amigo, Dr. Alessandro Loiola, recentemente; e concordamos em negar o título de ‘país de gente alegre e acolhedora’. No site do senado.leg, no texto “As raízes da violência”, diz “A falta de amor, atenção, segurança, limites, disciplina, valores, auto-estima são fatores determinantes da nossa caminhada para o caos social”. Ora, músicas que têm como objeto instintos mais baixos e básicos como poder, sexo e dinheiro, criam um desespero, especulado por Kierkegaard, que disse “O princípio da infelicidade humana se dá na comparação”. Ao ouvir e ver a ostentação fútil e vulgar de um grupo, o outro grupo, nesse caso, a maioria, percebe que não ‘possui’ àquilo que a faria feliz (poder, sexo e dinheiro). Não encontrando nenhuma possibilidade de aquisição imediata, como um estímulo dopaminérgico, já que se é desprovido de disciplina, valores, auto-estima, segurança, limites e amor, a violência se torna o único meio de concretude, por pulsão de morte. O ódio a si mesmo e à própria condição social-existencial deslocará como mecanismo para o outro, buscando destruir no outro tudo o que há em si (como projeção paranoica). A ausência do Nome-do-Pai implicará uma sobreposição das representações psíquicas, ou seja, o tipo de mundo que gostaria de possuir, mas não possui, na realidade objetiva, externa. O desmantelamento da religião e das tradições torna os deuses (e Deus), como disse Jung, em doenças. O sintoma social manifesto passa a ser psicose social; um triunfo da representação. E tudo só pode terminar mal.
Qual é ou onde está, nossa vida onírica?