Paulo H. Santos
É notável perceber que a reconceituação de liberdade nas últimas décadas transformou essa palavra, que antes carregava tanto significado e questionamento, em simplesmente uma espécie de trono, onde quem ali se sentar terá o poder não só para tudo que lhe convém, mas para tudo que é possível, beirando até o que carece de sentido. Dissociar liberdade de responsabilidade e dever é um caminho que a sociedade tem transformado lentamente em cultura e que é extremamente nocivo e mortal tanto para a sociedade em si, quanto para o caráter humano comum. Há de se considerar a curta memória histórica que cativamos hoje e recordar que toda a história do homem e da sociedade se deu a partir de deveres e não de direitos; a construção das ideias e das instituições que ainda hoje são os pilares morais e constitucionais do nosso mundo surgiu a partir da consciência de que liberdade e responsabilidade são inseparáveis.
Num momento em que a ideologização se torna algo superior à própria verdade, é extremamente comum confundir liberdade com cegueira. A falsa crença de que a liberdade se dará por si só, sem cobrar nada em troca, sem que para existir um direito isso não se torne um dever alheio, é nada além de uma utopia que pressupõe estar livre, cego, inerte e acorrentado. Liberdade nunca teve em seu sentido um significado tão banal quanto hoje; acreditar cegamente que se é livre enquanto se é escravo da própria concepção do que é, de fato, ser livre. Parafraseando Johan Goethe, “Ninguém é mais escravo do que aquele que se julga livre sem o ser”. Platão dizia que a concepção do homem se assemelhava a uma carruagem, onde o corpo seria a própria carruagem, o ser, o homem que a conduz, o pensamento, as rédeas, e os sentimentos, os cavalos. Considerar-se livre sem controlar a própria carruagem é abrir mão das rédeas, é deixar que os sentimentos te guiem para onde eles quiserem, é ser, além de tudo, escravo. Em suma, é acreditar que se tem direito a tudo, acesso a tudo e poder para tudo, e por isso deve-se exercer todas essas ramificações de “liberdade” e entregar as correntes que amarram as mãos às paixões, os pés aos prazeres e a alma à efemeridade.
Em uma das suas cartas aos Coríntios, São Paulo escreve uma frase que ainda ecoa nos dias atuais e continua a ter o mesmo sentido que tinha há dois mil anos: “Tudo me é lícito, mas nem tudo me convém”. Não existe de fato liberdade na ausência de moralidade, de deveres e responsabilidades. Entregar-se a essa utopia é cavar, com as mãos amarradas, o próprio túmulo de insuficiência e efemeridade que a escravidão te levará. É enxergar nada além do escuro e acreditar não ser cego; é ser escravo da pseudo-liberdade para tudo.
Ademais, a ilusão de uma liberdade sem limites gera uma sociedade fragmentada e hedonista, onde o prazer imediato se sobrepõe ao bem comum e à coesão social. Os indivíduos, ao perseguirem desenfreadamente seus desejos e vontades, negligenciam a importância do respeito mútuo, da coexistência. Assim, em vez de promoverem um ambiente favorável, fomentam conflitos e desespero.
A verdadeira liberdade exige a capacidade de auto-regulação e a disposição para arcar com as consequências dos atos. Sem isso, a sociedade caminha rumo à anomia, onde regras e valores perdem seu significado, e o caos se instala. É imperativo resgatar a compreensão de que a liberdade só floresce plenamente quando exercida com responsabilidade, ética e um senso de dever para com os outros e com a comunidade como um todo.