Por: Dr. Ricardo Abelha; doutor em psicanálise, filósofo, teólogo da cultura religiosa e consultor estratégico (PSYOPS)
Bem, cá estamos querido leitor; e hoje eu gostaria de fazer uma provacação para os nossos dias pacatos que, não deveriam ser pacatos, por de fato não o serem. Então, por que a percepção? Bem, por que talvez tenhamos desistido de nós mesmos e da justiça. Ou ainda, tenhamos perdido o referente de o que é justiça, ficando apenas uma definição lexical do bojo helênico e nada mais na realidade concreta. Mas precisamos nos lembrar com certa urgência, pois, se nos esquecermos para sempre, então, poderemos jamais sair do conformismo e da indiferença diante do mal, que em essência, é o próprio mal em si, posto que se o banaliza a ponto de não só, tornar-se onipresente, mas, estabelecer-se como Zeitgeist.
Eu gostaria de iniciar a conversa, de tom um tanto sombrio, mas necessário, recordando quem foi Niemöller. Ora, Martin Niemöller (1892–1984) foi um pastor luterano alemão que, nos primeiros anos da década de 1920 e no início da de 1930, nutria simpatia por muitas das ideias extremistas que ganhavam força na Alemanha. Como tantos outros, ele se deixara seduzir pelo discurso nacionalista e radical da direita, vendo nas promessas de Adolf Hitler um caminho para a restauração de um país devastado pela Primeira Guerra Mundial e pelas crises que se seguiram.
No entanto, quando Hitler ascendeu ao poder em 1933, Niemöller testemunhou o verdadeiro rosto daquele regime, uma face marcada por controle e opressão. Ao perceber a crescente interferência do governo nazista nas igrejas protestantes, algo que ele inicialmente subestimara, sua fé o levou a um confronto direto com o regime.
Niemöller, que outrora silenciara diante das primeiras perseguições, agora se via tragicamente consciente da tirania que ajudara a tolerar. Em 1937, sua voz se tornou uma ameaça, e o pastor foi lançado ao silêncio brutal dos campos de concentração. Durante os longos e sombrios oito anos que passou nas prisões de Hitler, Niemöller refletiu profundamente sobre sua própria cumplicidade no sistema que o oprimia. Preso entre as sombras de Dachau e Sachsenhausen, ele reconheceu o preço da indiferença.
Após o fim da guerra, sua consciência dilacerada o impeliu a proferir uma das declarações mais sombrias e dolorosamente sinceras do período pós-guerra. Em poucas palavras, Niemöller sintetizou o peso da inércia moral que permitiu o horror: “Primeiro eles vieram buscar os socialistas, e eu fiquei calado, pois não era socialista… Depois vieram pelos judeus, e eu não disse nada, pois não era judeu. Depois, vieram por mim — e não havia ninguém para falar.”
Essa confissão não foi apenas um lamento sobre o passado, mas uma advertência perpétua sobre o custo de se fechar os olhos enquanto a escuridão avança. Isso me fazlembrar quase que imediatamente ao frasista e dramaturgo Nelson Rodrigues (Nelson Falcão Rodrigues (Recife, 23 de agosto de 1912 — Rio de Janeiro, 21 de dezembro de 1980) foi um escritor, jornalista, romancista, teatrólogo, contista e cronista de costumes e de futebol brasileiro.
É considerado o mais influente dramaturgo do Brasil) que disse: — “Se o homem de bem tivesse a mesma coragem dos canalhas, o mundo estaria a salvo” — Niemöller não teve, ao menos não, inicialmente. Mas antes de julgá-lo, como (novamente citando Nelson Rodrigues) um personagem rodrigueano no palco, fazendo a plateia esquecer por um momento de sua própria monstruosidade, a ponto de, usufruir-se de pedras para castigar a si mesma, projetada, com todos os seus pecados e defeitos, no outro, pensemos que, os nossos dias não são flores, e que, não temos mais uma vez, visto a multidão de homens de bem, tendo a mesma coragem dos canalhas. Seria uma síndrome de Niemöller?
Não sabemos, mas há uma imensa tendência a alienação e a indiferença diante das injustiças, tanto quanto foi naquele momento histórico. Ocorre que, vale pontuar assertivamente o motivo dessa prosa —recentemente, o cantor Guilherme de Sá, ex-vocalista da banda Rosa de Saron, gravou seu novo DVD, com músicas inéditas, num retorno triunfal, e valha-me, a primeira música do show tem o título “Poema de Niemöller” —
Não é de hoje, que músicas são por vezes, fontes de protestos. Por exemplo: “L’homme armé” — (século XV) — Esta canção popular medieval francesa foi usada em várias missasrenascentistas. Ela simbolizava o medo da guerra e a violência que assolava a Europa durante a época das Cruzadas e outros conflitos militares; “La Marseillaise” (1792) — Hino nacional da França, composto durante a Revolução Francesa, simbolizando o grito de resistência contra a opressão e a tirania monárquica; “Strange Fruit” Meeropol e popularizada por Billie Holiday em 1939, essa — Escrita como poema por Abel música é uma poderosa denúncia do linchamento e da violência racial contra os negros nos Estados Unidos; “Blowin’ in the Wind”— Bob Dylan (1963) — Um hino dos direitos civis e da luta contra a guerra, com perguntas filosóficas sobre liberdade e justiça. “We Shall Overcome” (versão popularizada nos anos 60) — Canção tradicional que se tornou um hino do Movimento pelos Direitos Civis nos EUA, simbolizando esperança e resistência pacífica; “Fortunate Son” — Creedence Clearwater Revival (1969) — Crítica à Guerra do Vietnã e à disparidade entre os jovens pobres que lutavam na guerra e as elites que a apoiavam, mas se esquivavam do combate; “Ohio” — Crosby, Stills, Nash & Young (1970) — Música de protesto sobre o massacre de estudantes pela Guarda Nacional dos EUA em Kent State, durante protestos contra a Guerra do Vietnã; “Sunday Bloody Sunday” — U2 (1983) — Canção inspirada no Domingo Sangrento de 1972 na Irlanda do Norte, onde manifestantes civis foram mortos por tropas britânicas.
A música é um grito contra a violência e a guerra civil; “Zombie” — The Cranberries (1994) — A música foi escrita em resposta à violência e à guerra na Irlanda do Norte, especialmente após um atentado do IRA que matou crianças; “Where Is the Love?” — The Black Eyed Peas(2003) — Protesto contra o terrorismo, a guerra e o ódio racial após os ataques de 11 de setembro de 2001; ora, passamos em revista diversas canções aqui, há muitas outras, mas eu gostaria, de, retomar a atenção a Guilherme de Sá mais uma vez, ainda, para indicar sua música “Floresta de Bétulas” onde ele faz uma profunda e dura crítica ao Holocausto, com uma sensibilidade dificilmente encontrada em outros artistas brasileiros —.
A música tem um impacto profundo e culturalmente transformador no ouvinte. No livro “Música, inteligência e personalidade” do Dr. Minh Dung Nghiem (médico franco- vietnamita, nascido em 1235) inicia a obra com a seguinte provocação — “(…) Será correto afirmar que a música modifica a personalidade ou o Q.I. (quociente intelectual) de uma criança, em outras palavras, que ela possa transformar toda uma civilização? Eis aí uma questão que nós nunca nos colocamos, pois um adágio popular já não afirmou que a ‘música suaviza os costumes’? De qual música se trata? Mas os céticos por princípio, a menos que não sejam acometidos por uma patologia próxima àquilo que chamamos em psiquiatria de ‘amusia’ (insensibilidade às musas), sustentam obstinadamente que a música é uma arte menor. E que, como a pintura é antes de tudo um bem sobre o qual se especula em leilões e a gastronomia não passa de um pretexto para glutonaria, só uma arte, finalmente tem verdadeiro valor, a literatura. Vemos entre os que sustentam essa opinião escritores — o que pode parecer natural — mas também artistas, intelectuais e mesmo verdadeiros psiquiatras… No fimdas contas, qualquer um pode ter convicções. Mas seria necessário considerar que a música é inútil? Que a musicoterapia não passa de uma bela mistificação, que os musicoterapeuta são uns gozadores, ou mesmo uns charlatões? E, no entanto, seríamos tentados a crer que a musicoterapia é uma espécie de psicoterapia.
Mas e se a própria psicoterapia, bem como a psicanálise e mesmo todas as ciências humanas, não passarem de uma grande pegadinha para os esnobes, ou de uma ideologia? Qual medida deveria ser tomada, nesse caso, pelo Conselho da Ordem dos Médicos? É fato que estamos vivendo na era da covardia, da ‘língua de pau’ e da confusão das palavras…
Eu me coloquei essas questões por volta de 1986, vinte anos após ter defendido minha tese em Medicina” — é sabido que a música como arte, ou seja, expressão simbólica humana através da técnica (à perfeição) pode destruir uma sociedade ou não, algo alertado por Platão na República; ainda nos lembramos disso hoje? Daisy Oliveira em “A música como instrumento de poder” fala sobre a lenda Villa-Lobos, que segundo ela, na obra “(…) tomou para si como missão, em sua época, transformar a educação de crianças e jovens pela música. Não há limites para as lições em diferentes aspectos que podemos descobrir em sua trajetória empolgante”. Tenho notado que, a baixíssima qualidade musical em nossos dias, considerando inclusive, coisas como “Me ama (Mama)” de Valesca Popozuda que diz: — “Quando eu te vi de patrão / De cordão, de R1 e camisa azul / Logo encharcou minha xota / E ali percebi que piscou meu cu” — é muita poesia, e também um protesto ferrenho, mas contra a inteligência. Alguém que ouve isso erepete em mantra, tem qual consequência de vida se como disse o Dr. Minh “a música suaviza os costumes”? Quais os costumes tidos como desdobramento, de uma pornografia-songs? Bem, o ponto aqui, é que, se antes, o protesto era contra a tirania ou a monstruosidade humana, agora, parece ser apenas, um protesto contra hominem. No livro “Normose a patologia da normalidade” dos autores “Pierre Weil, Jean-Ynes Leloup e Roberto Crema” ele faz o seguinte levantamento :— “(…) Autômatos ou seres humanos conscientes? A característica comum a todas as formas de normoses é seu caráter automático e inconsciente. Podemos falar do espírito de rebanho. A maior parte dos seres humanos, talvez por preguiça e comodidade, segue o exemplo da maioria. Pertencer à minoria é tornar-se vulnerável, expor-se à crítica. Por comodismo, as pessoas seguem ou repetem o que dizem os jornais; já que está impresso, deve estar certo! Quantas pessoas aderem a uma ideologia, religião ou partido político só porque está na moda ou para serem bem vistas pelos demais?”
A grande questão, é sempre esse mesmo comodismo, presente em Niemöller para reagir contrário ao mal, não o aceitando em seu estado seja moral ou estético. Ideias, tem consequências, e a música as leva pelo vento, passivamente, sem a necessidade de se sentar para processar dados.
Ela está lá, presente em uma academia para exercícios físicos, no intervalo de uma escola, nas rádios ou ainda, no elevador de apartamento. Você pode não estar prestando atenção, mas por vibração, ela está penetrando seu organismo, sobretudo, seu cérebro, por repetições como forma de programaçãoneurolinguística. Você é o que ouve, tanto quanto é o que come.
Pitágoras já havia nos mostrado que a música, antes de tudo, é geometria; vemos muito sobre isso no livro “Geometria Sagrada bases naturais, científicas e pitagóricas” de Jesús Zatón — “(…) Pitágoras reúne os conhecimentos filosóficos e científicos dos grandes focos culturais de seu tempo, sintetizando e ampliando-os, para difundir-los por todo o mundo através de seus seguidores (os pitagóricos) [65]”, “(…) Na comunidade pitagórica de Crotona, os aspectos científicos e religiosos estavam intimamente ligados à mística e ao esoterismo. Tomando por base o orfismo e seus mistérios matemáticos e filosóficos, Pitágoras propõe um sistema de pensamento filosófico, científico e religioso, cujo principal objetivo era a purificação e o desenvolvimento da alma. Este fato é confirmado por Jâmblico, quando, referindo-se aos pitagóricos diz — ‘Assim que, se alguém quisesse saber onde vieram essas crenças tão piedosas, teria de afirmar que o exemplo claro da teologia pitagórica segundo o número encontra-se em Orfeu’ — Nesse sentido, a filosofia e a matemática apresentam-se como atividades intelectuais de elevação, como fatores de sublimação espiritual que permitem descobrir a essência e a harmonia do universo sob a forma de números inteiros. Assim, mística e ciência, metafísica e filosofia, aritmologia, geometria, música e cosmologia, corpo, alma e espírito, vinculam-se intimamente em uma síntese harmoniosa [67]”, “Na realidade, o que lhe interessa é a faculdade que a Geometria tem de gerar modelos capazes de mostrar a ordem dos céus. Assim, ele associa Os Elementos de Euclides à criação da alma do mundo, tal como explicada no Timeu de Platão, e com a fundação do limitado e do ilimitado como princípios últimos. Para Platão, a geometria é um tipo de conhecimento intermediário entre o visível e o puramente intangível e, por isso, um método para dirigir a alma até o ser eterno, uma escola preparatória para um espírito científico, capaz de voltar as atividades da alma para as coisas supra- humanas. No livro VII de sua República, Platão diz-nos, por exemplo, que a Geometria ajuda na formação do filósofo, pois obriga a alma a voltar-se para o lugar de onde reside o mais feliz do que existe, ou seja, o imutável” [63,64] ,“(…) Não canteis senão acompanhados da lira; levando em conta que a lira era o símbolo do setenário cósmico, isso significa que toda arte deve estar sintonizada com o espiritual ou torna-se um ato sagrado etc” [72] — fica claro que a música e a matemática assumem o mesmo caráter, o de permanência, perfeição, elevação. Ernst Chladni (1756–1827; Ernst Florenz Friedrich Chladni foi um físico e músico alemão. Investigou a vibração de placas e o cálculo da velocidade do som para diferentes gases. Devido a estas suas investigações é atualmente denominado o “pai da acústica”) fez o famoso experimento com o arco de violino de uma placa cheia de areia fina e fê-lo vibrar, comprovando que a areia movia-se formando figuras geométricas conforme a intensidade do movimento do arco, ainda na obra de Zatón, há o trecho — “No princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus. Ele estava no princípio com Deus. Todas as coisas foram feitas por ele, e sem ele nada do que foi feito se fez. Nele estava a vida, e a vida era a luz dos homens. E a luz resplandece nas trevas, e as trevas não a compreenderam.
De forma mística, mas muito concreta, o texto de João sugere que o Verbo, o som, a vibração sonora possui a capacidade de atrair os átomos da matéria intercósmica e estruturá-los, de dar-lhes forma [24]”, (…) podemos ir ainda um pouco mais longe e afirmar que a luz e o som constituem uma mesma essência, se bem que, em nosso plano de existência, seja mais fácil comprovar os efeitos configuradores do som. Cada um de nós, cada objeto que percebemos por meio dos sentidos, cada unidade atômica vibra em determinada frequência [25]” — consegue perceber que, por meio da música há um largo e veloz caminho para transformação cultural por meio de Operações Psicológicas e atividades táticas que podem inclusive em alguns casos, ser compreendido como Soft Power? A grande questão aqui, é novamente, a lembrança de Nelson ao sugerir que o homem de bem, tenha a mesma coragem do canalha. Vivemos numa síndrome de Niemöller, e nesse estado automático e indiferente a injustiça, tendemos a terceirizar, como Guilherme canta “estamos apenas cumprindo ordens…”. Quanto o feio, o mal, o deformado se manifesta na arte, na música, na literatura, no cinema por meio de atividade política, como uma forma de rebaixamento moral, é de obrigação moral, reagir. Guilherme de Sá foi assertivo ao rememorar Niemöller que se arrependeu; nós iremos ter tempo de auto examinar nossos erros e mudar de rota como ele?
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Sensacional artigo do Dr. Kaka Abelha! Até quando os bons vão ficar neutros?
Sensacional artigo do Dr. Kaka Abelha! Até quando os bons vão ficar neutros? Lembro-me de uma frase atribuída a Martin Luther King Jr.: “O QUE ME PREOCUPA NÃO É O GRITO DOS MAUS, MAS O SILÊNCIO DOS BONS”