Por Debora Haddad
Vivemos em um mundo emaranhado de informações, a guerra das narrativas tomou conta de nossa era. Tragédias iminentes são atiradas nas redes sociais como anzóis no oceano e o público morde a isca sem pestanejar. Nesse cenário caótico e apocalíptico, surgem figuras de todas as estirpes: mocinhos, bandidos, reféns, bobos da corte, palermas e até aqueles que vivem numa redoma de cristal. No entanto, iremos nos concentrar numa figura que vem se destacando na história da humanidade desde que o mundo é mundo: o falso herói.
O arquétipo do “falso herói” aparece em muitos mitos, lendas e textos religiosos, bem como na política. Essa figura muitas vezes se apresenta como um salvador ou uma pessoa de grande virtude moral, mas, na realidade, suas intenções são egoístas, enganosas ou até mesmo malévolas. O falso herói é uma figura que ascende à proeminência, ganhando frequentemente confiança e a admiração dos outros. Porém, ao final da história, é revelada sua verdadeira natureza de manipulador ou vilão.
Xerxes I, o rei persa que governou de 486 a 465 a.C., pode ser considerado um dos maiores exemplos de anti-herói de nossa história. Devido ao seu papel crucial nas Guerras Greco-Persas, Xerxes é retratado como uma figura tirânica, movida pela sua ambição arrogância e desejo de vingança. Suas motivações para invadir a Grécia não eram nobres e estavam parcialmente relacionadas à expansão de seu império e à vingança por seu pai, Dario I, que havia sido derrotado na Batalha de Maratona. Porém, Xerxes também exibe ambiguidade, tornando-o mais do que apenas um vilão. Seus momentos de dúvida e hesitação, como sua relutância inicial em invadir a Grécia e suas consultas com conselheiros, revelam um lado mais humano. Essa complexidade se alinha com o arquétipo do falso herói, onde o personagem não é puramente bom nem puramente mau, mas opera em uma área cinzenta. É nessa área cinzenta onde mora o perigo.
A área cinzenta é o palco das tentações, onde a cortina de fumaça surge para distorcer a visão e confundir a opinião pública. Dissipar essa névoa e distinguir o falso herói do verdadeiro é uma tarefa difícil de executar, pois a resposta pode estar no íntimo de cada pessoa, variando de acordo com o que ela realmente acredita e com os seus verdadeiros interesses, sejam esses para benefício próprio ou coletivo. Por isso, é essencial refletirmos sobre nossas próprias falhas de caráter, entender como elas nos prejudicam e também como podem afetar o nosso entorno.
O falso herói na filosofia e na religião
A narrativa do falso herói, quando vista através da lente da teologia cristã, atesta a necessidade de reconhecer a verdadeira natureza do bem e do mal, mesmo quando estão disfarçados, servindo de alerta sobre a importância da vigilância espiritual. Pelos acontecimentos bizarros que temos presenciado, parece que o pêndulo entre o bem e o mal está descontrolado: ora radicalmente de um lado, ora sorrateiramente do outro. Na bíblia, a história do primeiro rei de Israel, Saul, representa o fracasso do falso herói. Ungido por Deus através do profeta Samuel, Saul era visto como um líder auspicioso e corajoso, escolhido para unificar e proteger o povo de Israel. Porém, apesar de seu início promissor, ele rapidamente começa a desobedecer às instruções de Deus, agindo de forma egoísta e paranoica. Por ciúmes e medo de perder o poder, Saul tenta assassinar Davi, o jovem pastor destinado a ser seu sucessor. Consequentemente, as ações e intenções de Saul fizeram com que Deus o rejeitasse e determinasse a sua queda, transformando-no de herói nacional em um exemplo de desobediência e fracasso, enquanto a fé de Davi em Deus e a sua humildade tornaram-no o verdadeiro herói da nação naquele período. O antagonismo entre Saul e Davi elucida que, apesar da maldade humana, Deus trabalha com um propósito maior, condenando os arrogantes e exaltando os humildes.
Ainda nos registros bíblicos, há Judas Iscariotes, um dos doze apóstolos de Jesus, escolhido para seguir e aprender diretamente com ele. Como apóstolo, Judas teve a oportunidade de ser um paladino espiritual, ajudando a espalhar os ensinamentos de Jesus. Mas sua ganância e ambição falaram mais alto: Judas se tornou um dos maiores traidores da história ao entregar Jesus às autoridades em troca de 30 moedas de prata. Seu nome se tornou sinônimo de traição e ele é lembrado como o falso herói que falhou gravemente em seu papel mesmo estando tão próximo de Jesus, o verdadeiro herói.
Na mitologia grega, um exemplo de falso herói foi Alcibíades, um general ateniense carismático, protegido de Sócrates. A princípio, ele era visto como um herói militar e líder nato de Atenas. No entanto, ao migrar para Esparta e depois para Pérsia, renunciando a sua cidade-estado, Alcibíades ficou conhecido por sua ambição desenfreada, sua falta de lealdade e sua vida pessoal controversa. Sua traição e inconstância transformaram-no em um anti-herói, sendo criticado por sua falta de escrúpulos e moralidade.
Teseu, o famoso herói que derrotou o Minotauro e unificou Atenas, é frequentemente citado como o protótipo do rei justo e corajoso. Contudo, em várias versões da mitologia grega, Teseu também é mostrado como alguém que comete erros graves, como ao abandonar Ariadne, sua aliada na derrota do Minotauro, na ilha de Naxos. Outro exemplo de sua imprudência, exposto nas narrativas, foi a tentativa de sequestrar Perséfone, a esposa de Hades, junto a seu amigo Pírito, com o objetivo de torná-la esposa deste. Esse ato foi uma violação grave das leis divinas e humanas, demonstrando a arrogância e a temeridade de Teseu. Sua vida termina em tragédia, sendo exilado e eventualmente morto, refletindo o lado mais sombrio de sua personalidade e as consequências de suas decisões egocêntricas.
Esses exemplos de falsos heróis, tanto na Bíblia quanto na filosofia grega, destacam como a falibilidade humana e a moralidade ambígua podem transformar figuras inicialmente admiradas em símbolos de alerta. Eles ilustram como a fraqueza moral, a ambição desmedida, e a traição podem desvirtuar até mesmo os grandes heróis.
O falso herói na literatura e nos filmes
O falso herói é constantemente ilustrado como alguém que manipula eventos a seu favor, se apropriando dos feitos dos outros e enganando pessoas para que acreditem em sua integridade.
Na literatura brasileira, podemos citar “Macunaíma: O Herói Sem Nenhum Caráter”, de Mário de Andrade, como nosso exemplo de falso herói tupiniquim. Macunaíma é um anti-herói por excelência, alguém sem caráter definido que muda constantemente de opinião e comportamento para se adaptar às circunstâncias que lhe convêm. Ao contrário dos heróis tradicionais que possuem virtudes e são movidos por nobres causas, ele é preguiçoso, egoísta, e desonesto. Seu principal desejo é uma vida de prazer e de conforto sem esforço, um escravo do hedonismo. O livro é uma crítica a sociedade brasileira, pois Macunaíma, com sua falta de moral e caráter, simboliza a corrupção, a hipocrisia e os conflitos sociais e políticos intrínsecos na nossa nação.
Nos filmes, a figura do falso herói é amplamente difundida. Uma das obras mais conhecidas, Star Wars, tem em seu núcleo um personagem sombrio e ao mesmo cativante, Darth Vader. Anakin Skywalker começa como um herói prometido para trazer equilíbrio à Força, mas seu medo, raiva e desejo de poder o levam ao lado escuro, transformando-o em Darth Vader. O arco de Anakin é um exemplo clássico de um herói que cai em desgraça, traindo seus ideais e se tornando um dos maiores vilões da história do cinema.
Na política, a figura do falso herói não é muito diferente. Assim como nos livros e filmes, esses indivíduos costumam surgir como líderes carismáticos, com promessas grandiosas de mudança e salvação, se apresentando como os verdadeiros salvadores da pátria. No entanto, à medida que ganham poder, revelam uma face muito mais sombria.
Muitos líderes políticos começam suas trajetórias como Anakin Skywalker, o “Escolhido”, carregando a expectativa de serem agentes de renovação. Contudo, com o tempo, sucumbem à tentação do poder, corrompendo-se pelo autoritarismo, pela ganância e pelo desejo de controle, transformando-se, assim, em Darth Vader. Esses líderes manipulam a opinião pública, utilizam propaganda e discursos demagógicos para manter a imagem de “heróis”, enquanto minam as instituições democráticas e traem os próprios valores que prometeram proteger.