By Dr. Ricardo Abelha
Recentemente estive em live com o professor Rodrigo Oliveira, vulgo Seymour Glass – professor e mestre em filosofia, também, doutor em ciências da religião – no Instagram; falamos sobre a crise da modernidade. Cabe deixar aqui uma excelente citação de seu trabalho, seu livro “Ensaios sobre os Deuses Depressivos”, onde de modo muito sofisticado, ele dialoga com o interlocutor ideias que vão de Santo Agostinho até Byung-Chul Han.
Tenho uma tendência de pensar Chul Han como um tipo de Murakami, alguém que não só compreende o pessimismo pós-moderno de modo estrutural e existencial, mas que também utiliza de certa ironia socrática, com licenças poéticas, dando um tom original a questões que mais se parecem surrealistas do que desconexas de sentido. O niilismo pós-moderno é ausente de humor, e isso é de uma tristeza sem objetivo. É um vazio com outro vazio dentro.
Quando os romanos perderam seus deuses pela expansão da cosmovisão cristã, sobretudo graças aos mártires, que se agarraram a algo maior que eles, havia um humor subjacente. As estátuas e os bustos coloridos tornaram-se cinzentos, e os grandes feitos heroicos apagaram-se, tornando-se mármore incolor. O humor aqui é que o tempo vence a todos, e o cansaço dos olimpianos de uma existência permanente se metaforiza, resignificando-se num outro aspecto que não o original. A representação passa a ser uma representação-da-representação, um vórtice enfadonho e totalmente simbólico de si mesmo em si mesmo.
É quase um humor filosófico, um tipo de humor que Mark Twain tiraria proveito, tal qual um Nelson Rodrigues. Mas, os pós-modernos não são mal-humorados, eles são desprovidos de qualquer potencialidade ou subtração de potência no que tange ao humor.
Há humor na ira de Moisés, batendo na pedra ou exortando Faraó para deixar o povo ir; há um aspecto triunfal, esperançoso, há de modo inconfesso certa “jornada do herói”, como diria Joseph Campbell. Mas não há nada no pós-modernismo. Esse é um marco na humanidade; é uma inação do sentido, é um esvaziamento do espírito de modo tal que precisa-se agarrar identidades literárias e considerá-las autênticas, a ponto da mutilação física por procedimentos cirúrgicos, para depois de não pertencer a nomenclatura alguma do corpus biologicum.
Isso é menos do que triste, é um “isso”, é um vazio sem objetivo. É algo absolutamente pulsional. E aqui quero chamar a atenção para a manifestação direta do inconsciente como a sua majestade. Uma deformação da realidade objetiva pelo triunfo da representação pulsional. O desejo não tem objetivo; é uma fome sem fim, como o poder. É uma maldição de Tântalo. A famosa condenação eterna de sentir fome e sede, sem objetivo. Apenas ser-isso.
Ora, essa ausência de objetivo de modo absoluto, a inversão do conceito de sumo-bem, poderia ser aquilo a que Kierkegaard tentou nos alertar: o desespero. Evidentemente, que Kierkegaard jamais mencionou o termo “inconsciente”, mas, sabendo o que era o Conceito de Ironia, estrutura deformada e pervertida do bom e velho socratismo, ele identificou o que hoje, segundo o PhD Jon Stewart, chamou de “crise da subjetividade”. Em palavras mais objetivas, de modo ainda anterior a Nietzsche, Kierkegaard identificou o esvaimento de objetivo no esvaziamento de sentido. A crise da modernidade como crise da subjetividade, ou seja, o fim do sujeito (a fragmentação completa de nossa vida mental).
Meu amigo Rodrigo usou a Caverna de Platão como metáfora, uma caverna dentro da caverna; sem que ele soubesse, essa metáfora vai de encontro ao que Kierkegaard disse sobre o romantismo alemão – uma subjetividade dentro da subjetividade. Me lembro da melhor expressão sobre isso vir de outro amigo meu, que aprecio, o Dr. Alessandro Loiola, em um jantar no qual nos encontramos, onde ele disse “uma síndrome de matryoshka”.
Exatamente isso. O ponto aqui é que essa fragmentação do Eu vem-a-ser muito problemática, já que quem passa a dar as cartas é o Isso (ID). Assim como foi para os romanos, o descoloramento e a perda do humor heroico de seus deuses, a ausência da imanência da religião, reduzida a uma antropologia vulgar, onde todas estão corretas e levam ao divino (algo parecido com os ideais perenialistas do metafísico Schuon), o pós-modernismo reduziu-se a meras almas de mármore (outra expressão que ouso emprestar do meu amigo Rodrigo).
O curioso é que, inevitavelmente, como ensinou Jung, o inconsciente continua coletivo e continua tendo seu fundo mítico. Ou seja, quer queira-quer-não, a crença em Deus continua sendo a crença mais básica de todas, porque Deus está dentro de nós (algo mostrado por Edward E. Edinger e Jordan Peterson). Bem, se isso de alguma maneira dialoga com a teologia e a filosofia da religião, uma vez que cai na defesa de Alvin Plantinga, que disse exatamente que a crença em Deus é uma crença básica, perdendo o argumento ontológico de Santo Anselmo da Cantuária de vista, os pós-modernos, na necessidade de adorarem a divindade, não sabendo mais sobre ela, mas ainda a obtendo em si mesmo, inclina ao que foi dito por Chul Han, rememorado pelo Rodrigo em live, a meu pedido, que os smartphones substituíram o rosário.
Bem, se as coisas ficaram assim, é razoável considerar que o celular, como disse Rodrigo, se tornou um templo, e os deuses contemporâneos são as pessoas – que detêm mais atenção, mais curtidas, mais “amei”, mais compartilhamentos, mais salves, mais seguidores – algo que supera a idolatria ao bezerro de ouro e ainda, o pecado de Acã.
Nosso tempo escorre pelos dedos, torna-se pura negligência, como advertia Sêneca, e recaí na angústia, como alertou Kierkegaard, de modo profundamente mórbido, mas de uma ‘morbidão’ insossa. Sem sentido por ser sem objetivo. Os pecados de Tomás de Aquino foram rebobinados, substituídos pelos pecados contemporâneos, pintados por Nelson Rodrigues em “A vida como ela é” e o Logos de Platão, bem como as formas, vão parar no divã como neurose obsessiva.
Eu me recordo da frase de Kafka “há esperança, não para nós” e penso no absurdismo de Albert Camus. A cena que eu mesmo pinto é a de Atlas carregando os céus. Cada um de nós carrega o peso dos próprios céus nas cabeças. Uma condenação por ser livre, como disse Sartre, e uma liberdade que implica infinitas possibilidades, mais uma vez, recaindo na angústia de Kierkegaard.
O pós-modernismo é aquele beco, um centro de encontro para diversos tipos de niilismos, mas todos eles sem conseguir satisfação e prazer em gerarem uma síntese. Isso porque, como eu disse, o esvaziamento de sentido é sem objetivo.
No Holocausto, apesar de ser a cena mais dramática da história da humanidade, Victor Frankl concebeu a teoria do sentido. O Eu-Tu de Martin Buber se tornou um Logos moderno, a famosa Logoterapia. Ele conseguiu fazer alguém, vendo os familiares se tornando cinzas nas fornalhas, conseguir um sentido maior que seu espírito para chegar ao final, apesar de tudo.
Bem, lá, naquele local absurdo, havia mais sentido do que em nosso quotidiano, onde, como disse Bauman, a invisibilidade online é equivalente a estar morto. Se Descartes disse “penso logo existo”, famoso Cogito, ergo sum, hoje, não ser seguido ou não receber um “like” é corresponder ao purgatório de Dante.
O desejo se tornou o imperativo, já apontava Lacan, talvez o que ele nunca teria imaginado é que esse ‘meliante’ substituiu o superego, perdendo contato com a realidade externa, fazendo desmoronar o tecido social. O desejo, de modo absoluto, o Isso, desenfreado, como a fome de Tântalo, só pode consumir tudo, começando por si mesmo.
Talvez seja por isso que ninguém consegue mais conceber um único pensamento por conta própria, sem necessitar de um grupo que o corresponda. Bem, se seremos capazes de resistir a esse cenário, eu não sei, mas me parece bastante assertivo o que dizia Freud sobre a repressão em favor da civilização, algo muito parecido em análogo com o cristianismo, e com o estoicismo – um triunfo da racionalidade sobre os ‘impulsos’.
Esse Eros descontrolado, dionisiacamente, irá implicar, mais cedo ou mais tarde, num Thanatos selvagem. Esse tema é velho, e boa parte foi discutido por Freud e Einstein em “Por que a guerra” de
1932. Somente uma elevação cultural, deslocando a busca por prazer e satisfação de um objeto, digamos, mais vulgar e instintual para outro mais elevado e estético, pode colaborar. Tudo se baseia em sucedâneos; nunca vencemos vícios nenhum, e mesmo a submissão à divindade num contexto mítico do cristianismo é uma troca, da satisfação e prazer carnal imediata pela imanência da revelação (algo discutido por Ricardo Torri de Araújo).
Essa elevação cultural e essa repressão necessária colaboraria para o retorno à atenção da própria subjetividade, um desligamento histérico da massificação em bloco, construída por pensamentos revolucionários, desfazendo o que Kierkegaard chamou de “nivelamento”, tornando mais possível a capacidade de individuação (si-mesmo).
Se o homem só se realiza em si mesmo, como defendia Kierkegaard, mesmo Freud sendo ateu, ele reconheceu o valor da religião em suas cartas trocadas com Oskar Pfister. Se Deus está dentro de nós, arquetípica e miticamente, como predisposição à crença básica, poderíamos encontrar redenção, como falou muito Dostoiévski? Estaria, enfim, essa redenção no crucificado?
Bem, se o inconsciente é mítico, e Deus é um arquétipo básico, por que antes é uma inscrição mítica, então, ele será buscado direta ou indiretamente, como Eros perseguiu Psiquê. Se isso é assim, então, seria Deus nossa redenção, e enfim, nosso Eu verdadeiro (si-mesmo / individuação)?
1 comentário
Outro texto fenomenal do Dr. Kaka Abelha! Maravilhoso!