Por Sidney Cruz
A fragilidade de nossa racionalidade é, sem dúvidas, um afastamento dos pilares que estruturam o nosso ser como membros de uma sociedade originária de uma metafísica milenar e transcendental. Um dos pilares da sociedade humana tem como premissa que somos capazes de fazer as melhores escolhas quando, na verdade, somos mais aptos a justificá-las para nós mesmos e, quando necessário, justificar as razões pelas quais fizemos determinada escolha, não pela razão, mas para pertencermos a algum grupo específico. Não vejo nada além de uma desconfiguração provocada. Não é de hoje que seres iluminados entendem que podem mudar o mundo trazendo um “paraíso na terra” a partir de seus devaneios ideologizados sem vínculo com a realidade ou com a experiência humana histórica.
Não nos negamos a ver os perigos no presente. Não nos aproximamos de uma onça para fazer uma carícia nem estendemos a mão para uma cobra. Da mesma forma, podemos perceber uma tempestade que se aproxima com o céu que escurece e traz consigo raios e trovões assustadores. Temos essa capacidade de detectar esse tipo de perigo, um aprendizado que está em nossa herança ancestral. O que quero dizer com isso é sobre a experiência humana que empunha consigo uma verdade que está além do nosso tempo e não é fruto dos conceitos científicos modernos.
Mas afinal, o que é o tempo? Poderia responder como Agostinho de Hipona:
• ”Se ninguém me perguntar, eu sei; porém, se o quiser explicar a quem me fizer a pergunta, já não sei.” –
O tempo é uma incógnita? Mas, ao mesmo “tempo”, só podemos enxergá-lo a partir do presente. Do presente, encontro o passado, que só existe na memória da humanidade. Do presente, encontro as possibilidades de um futuro que ainda está na escuridão profunda do meu conhecimento. Desse modo, só posso encontrar no futuro uma relação do passado e do presente que estão a todo momento em completa interação, nos direcionando à verdade fruto dessa mesma relação. Não há “mundo melhor” que se distancie do processo empírico da própria história no tempo; não há “mundo melhor” que se distancie do presente no tempo do agora, em que presenciamos as coisas tal e qual, a partir da capacidade de estabelecer pela inteligência o bom e o ruim, o verdadeiro e o falso.
Poderia dizer como Vilém Flusser sobre a realidade, que vivemos em uma cultura programada, onde os aparelhos tecnológicos ditam a forma como interagimos com o mundo e uns com os outros, levando a uma realidade que é, em grande parte, artificial e construída por esses dispositivos. Ou da relação da linguagem, onde os símbolos linguísticos carregam significados que moldam a maneira como interpretamos o mundo. Daí, a manipulação da linguagem afeta diretamente a racionalidade e a percepção do mundo. Ou da visão distorcida do mundo, herança de Heidegger, os quais, embora sentindo o valor ontológico da língua, dela se utilizam para uma espécie de jogo de palavras. Desta maneira, violentam a língua, forçando-a a adaptar-se, ao invés de adaptarem-se a ela. Ou quando ele vai dizer: “Que conhecimento, realidade e verdade são aspectos da língua. Que ciência e filosofia são pesquisas da língua. E que religião e arte são disciplinas criadoras de língua. Essa afirmação nada deveria ter de original, chocante ou rebuscado. As antigas sabedorias dos nossos antepassados a afirmam. Logos, a palavra, é o fundamento do mundo dos gregos pré-filosóficos.”
É incrível e ao mesmo tempo aterrorizante como a dificuldade de entender a língua, escrita ou falada, é parte de nosso contexto. Isso não implica outra coisa senão a perda da racionalidade. A comunicação é um obstáculo a ser vencido; comunicar-se é um terreno sombrio, uma escuridão da falta da luz do entendimento da própria língua. Não desprezamos o trabalho comportamental de um mundo das “teorias do pensamento” com pensadores que quiseram remoldar o mundo manipulando a capacidade de compreensão, um trabalho de emburrecimento programado.
Por fim, vivemos em uma era onde a racionalidade está em risco, não apenas pela complexidade crescente da tecnologia e da comunicação, mas pela nossa incapacidade de lidar com a formação ontológica da consciência individual. A desconfiguração da linguagem e a manipulação da realidade através de ideologias desconectadas da experiência humana histórica ameaçam nossa capacidade de fazer escolhas racionais e fundamentadas. Portanto, é imperativo que cultivemos uma consciência crítica como indivíduos que somos promovendo uma compreensão profunda e equilibrada da realidade que nos cerca, não desprezando os processos transcendentes do desenvolvimento humano. É certo que passamos por um declínio civilizatório, nada mais é que efeito da perda da individualidade. Nada está perdido, não por enquanto.