Por Laja Zylberman
“Renda-se como eu me rendi, mergulhe no que você não conhece, como eu mergulhei. Não se preocupe em entender, viver ultrapassa qualquer entendimento.”
— Clarice Lispector
Clarice Lispector é, sem dúvida, uma das mais importantes escritoras brasileiras do século XX. Como uma figura feminina na literatura, para mim, ela se iguala a Virginia Woolf. Nascida na Ucrânia, veio para o Brasil com menos de um ano de idade. Clarice fazia parte de uma família judaica que foi perseguida durante os progroms, um período de terrível violência que resultou no estupro de sua mãe, levando a família a fugir para o Brasil.
Clarice escrevia de um modo tão profundo e apaixonante que, ao ler seus textos, sentimos uma dor no coração. Sua voz íntima transfere da nossa alma para o fluxo da consciência, fazendo-nos refletir sobre questionamentos desconfortáveis e desafiadores. Escrever sobre Clarice é um desafio, pois o verbo correto é “sentir”. Sua obra nos convida a viver um pensamento, a mergulhar na introspecção.
Fatos e pormenores, dizia Clarice, a aborreciam. Ela tentava apagá-los, mas poucas pessoas se expuseram tanto quanto ela através de suas obras — romances, contos, cartas, poesias e textos jornalísticos —, sempre colocando suas verdades interiores e intimistas como prioridades.
Clarice era uma mulher extremamente bonita, exótica e misteriosa, com maçãs do rosto salientes e olhos pequenos. Sempre bem vestida, tinha um gosto particular por joias. Adorava perambular pelas ruas e observar as vitrines faiscantes das lojas de joias. Quando podia, comprava-as e as usava com muita elegância. Era uma verdadeira esteta.
Ela dizia: “Liberdade é pouco.”
Clarice faleceu um dia antes de completar 57 anos, um acontecimento muito triste. Ela escreveu uma prece, que, embora longa, merece ser destacada. Vou reduzi-la aqui, mas quem desejar lê-la na íntegra pode encontrá-la no livro Uma Aprendizagem ou O Livro dos Prazeres, na página 56:
“Alivia a minha alma, faze que eu sinta que a tua mão está dada à minha.
Faze que eu sinta que a morte não existe, pois na verdade estamos na eternidade.
Faze que eu sinta que amar é não morrer, que a entrega de si mesma não significa a morte.
Faze com que eu sinta uma alegria modesta e diária.
Faze que eu não te indague demais, porque a resposta seria tão misteriosa quanto a pergunta.
Faze com que eu receba o mundo sem receio, pois para esse mundo incompreensível eu fui criada, eu mesma também incompreensível. Então é que há uma conexão entre esse mistério do mundo e o nosso, mas essa conexão não é clara para nós, enquanto quisermos entendê-la.
Abençoa-me para que viva com alegria o pão que como, o sono que durmo.
Faze com que eu tenha caridade por mim mesma, pois não poderei sentir que Deus me amou.
Faze com que eu perca o pudor de desejar que, na hora da minha morte, haja uma mão humana para apertar a minha.
Amém.”
Hoje, consegui um depoimento exclusivo para a VOZ do neto de Clarice, Bruno Valente, que compartilhou um pouco do que significa ser neto de uma das maiores escritoras de todos os tempos.
Rio de Janeiro, 16 de julho de 2024
“Ser neto de Clarice sempre foi misterioso… Apesar de não ter conhecido minha avó pessoalmente, apenas através das memórias de família e de seu legado, ela deixou registrado de maneira bem clariceana o desejo de ser lembrada por nós. Quando meus pais ainda não falavam em ter filhos, ela escreveu uma dedicatória para os netos que ainda não existiam no primeiro exemplar de A Mulher que Matou os Peixes, em 1968. Também escreveu um texto para a família, dizendo que, quando morresse, voltaria na forma de uma esperança literal, o inseto verde, que de fato nos visitou em muitos momentos familiares inusitados. Uma vez, meu pai foi para o hospital e adivinhe quem estava na porta do quarto esperando? Ela mesma.
Então, ser neto de uma grande escritora continua sendo um grande mistério…”
Clarice Lispector permanece uma estrela brilhante na literatura, cuja luz transcende o tempo e continua a iluminar nossas vidas com suas palavras profundas e instigantes.